terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Crônica do Dia – A mentira – Por Whisner Fraga.

“Queria gritar para pararmos, para descermos do Fusca e nos sentarmos na praça.”
Whisner Fraga 
Whisner Fraga
Íamos os quatro naquele fim de tarde, o disco do Kreator se agitando no toca-CDs: “Future now/ It’s already decided for you/ You have all you nedd/ So don’t ask for more.”. Íamos desiludidos e a música alta quase nos intimidava. Minha oração estava afiada na memória: “Choro por ver que os dias passam breves/ E te esqueces de mim quando tu fores;/ Como as brisas que passam doudas, leves/ E não tornam atrás a ver as flores”. Não ouço mais nada, nem ninguém: “Tu és o louco da imortal loucura;/ O louco da loucura mais suprema./ A terra é sempre a tua negra algema,/ Prende-te nela a extrema desventura.”
Alternava Kreator, Teófilo Braga e Cruz e Sousa. Teófilo Braga, Kreator e Cruz e Sousa. Cruz e Sousa, Teófilo Braga e Kreator. E começava tudo de novo. Havia uma boa razão para tudo isso: era véspera de fim de férias e eu teria de retornar aos estudos, a um cotidiano de estudante de engenharia que deixava pouco para a vadiagem. Era prova atrás de prova, equação atrás de equação, projeto atrás de projeto e não tínhamos tempo para assimilar o próprio crescimento.
Íamos os quatro em silêncio porque só um ficaria em Ituiutaba. Os demais, cada um para seu canto. E, apesar da amizade, nesse interim, nessa brecha entre duas férias, não nos falávamos. Não tínhamos sequer o telefone um do outro. A internet ainda seria inventada. Era proposital o barulho dentro do carro: Kreator devia nos silenciar. Teófilo Braga devia nos silenciar. Cruz e Sousa devia nos silenciar.
Até que a música acaba e um zunido transpõe nosso mutismo. “O quê?”. Não, ninguém disse nada. Sabíamos que a partir dali, a coisa pioraria. Aos poucos, nos aproximaríamos do diploma, aos poucos aceitaríamos um emprego sabe-se lá onde, aos poucos construiríamos nosso futuro, sem muita escolha. E assim, família, trabalho e responsabilidades destruiriam nossa amizade. Talvez, se houvesse entre nós um que fosse perseverante, esse destino não seria tão impiedoso assim. Talvez, se houvesse um que fosse aquilo a que chamamos de “elo”. Talvez, se houvesse um que exigisse de todos um compromisso qualquer. Mas não havia.
Por isso o carro deslizava pelas ruas quase desertas no fim de tarde de uma cidade pequena e estávamos em silêncio. Só a cabeça tentava decifrar o que Teófilo Braga, Cruz e Sousa e Kreator tinham em comum. Por que os três se embaralhavam, se revezavam em meu pensamento. Queria gritar para pararmos, para descermos do Fusca e nos sentarmos na praça. E antes de nos ajeitarmos nos bancos, eu desejava pedir a todos um abraço. Que nos abraçássemos, os quatro. Que nos disséssemos que a vida era boa e nossa amizade indestrutível. Que arrumaríamos um tempo para nos encontrarmos em um feriado qualquer. Que seríamos sempre quem sempre fomos. Que escreveríamos cartas uns aos outros. Que. Que. Que. Mesmo que fosse mentira.

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