sábado, 5 de outubro de 2019

O brega e o seu poder de embalar amores e sofrências

Em Pernambuco, gênero é consagrado e se tornou, por meio de lei estadual, em 2017, expressão cultural



"Mon Amour", encher os pulmões para cantarolar, em alto e bom som, as sofrências do amor, é umas das porções de felicidade mais bem-vindas ao ser humano. Toca aê um Fernando Mendes, depois emenda com Labaredas e chega ao Conde do Brega, acompanhados por umas boas doses de cana e de lágrimas. É claro que a cura, ou pelo menos, o alívio para qualquer coração partido, há de chegar.

É por essas e outras que o brega, enquanto gênero musical, permanece entre os mais celebrados dos alentos, fato que impossibilita deixar à margem a sua importância, desenhada desde os idos das décadas de 1960/1970 com Evaldo Braga, Wladick Soriano e Odair José, entre outros nomes "cafonas" que permanecem como inspiração a outros tantos, até chegar a um Reginaldo Rossi, referência do ritmo para os contemporâneos, que imprimem outras roupagens ao gênero.

"O brega tem uma relação com a música romântica, mas nem toda música romântica é brega e nem todo brega é romântico. É uma parte muito significativa do gênero, porque é muito aderente ao imaginário que se tem sobre ele no Brasil, atrelado que está às canções românticas de dor de cotovelo", explica o professor e pesquisador em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thiago Soares, autor de "Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco", livro que traz uma abordagem sobre o gênero no Estado, passando por diversos vieses e aspectos culturais e sociais.

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E é exatamente sob a ótica do social que o brega se mostra sobrecarregado por estigmas. Periférico em sua origem e caracterizado por uma estética que passa longe dos tais "românticos refinados", o ritmo esbarra em preconceitos advindos do próprio meio artístico, quando alguns se valem de que ser brega (na música) significa ser menos. "Brega é um gênero musical que tem uma história, a partir da relação das classes populares com a música romântica. Dessa musicalidade produzida e consumida por pessoas pobres, advém a primeira relação do gênero com uma certa oposição à Jovem Guarda, que teria os ídolos românticos populares.

A ideia do brega como música está atrelada a isso, sendo um termo que tem uma carga forte, muito pejorativa e de construção de diferenças: música ruim e de pobre", complementa Thiago, que deu ao livro título extraído do trecho de uma canção de um dos ícones pernambucanos sobre o assunto, o Conde do Brega. Aos 66 anos e pelo menos vinte "a serviço do brega", Ivanildo Marques da Silva virou "Conde" desde a infância, quando os avós lhe deram a alcunha que o levaria, anos depois, a fincar sua trajetória dentro do gênero em Pernambuco. Lembrado entre dez em cada dez artistas bregueiros, Conde do Brega integra o rol de "cantores das antigas" junto a outros nomes que povoam o cancioneiro local.

"Tenho meu estilo próprio e nunca quis copiar ninguém. Minha voz é inconfundível justamente por ser feia e nem gosto de me ouvir cantar, mas as pessoas dizem que me admiram. Deve ser pelo carisma que isso sei que eu tenho", celebra ele, que tem nove discos gravados, seis coletâneas e quatro DVDs, material que simboliza bem o chamado "brega de antigamente". "Porque é o que as pessoas querem curtir. No último disco, regravei canções do Alípio Martins e do Maurício Reis e é esse o brega que tem qualidade, são artistas com talento e conteúdo para ver e ouvir", opina.

'Brega das antigas x jovialização do brega'
O Conde pode até ter suas razões, justificadas, inclusive, por sua consolidação no gênero - que se tornou expressão cultural de Pernambuco (Lei 16044/2017). Assim como ele, nomes como Augusto César, Adilson Ramos e integrantes das bandas Camelô e Rossi (A Original), defendem o romantismo que exalta o amor e outros tantos sentimentos que o cercam e que não necessariamente descambam para decantar o corpo, sexualizando letras e melodias.

"Eu me coloco como um cantor romântico de verdade. Podem ver todas as minhas canções, do início ao final, falam ao coração, com mensagens de saudade, recordação e de amor puro, então eu me julgo como um cantor romântico realmente que canta o amor", ressalta um dos ídolos locais mais cortejados, que complementa: "Acho que hoje caiu muito a qualidade das músicas, até têm algumas bonitas, mas hoje se canta mais cama e menos o amor".

Uma "ausência de amor e predominância de corpo" que aparece em hits cantados, por exemplo, pela dupla Shevchenko e Elloco. Do fato decorrem alguns entraves entre os que defendem a supremacia do romantismo no gênero que não deveria, inclusive, somar "parcerias" de outros ritmos. "Ou é brega ou é funk. E a música brega para a banda é a forma de tentar falar de amor, de maneira mais profunda, desse sentimento. Isso para nós é o brega, é o que ele traduz para nós", argumenta Luizinho Vilar, à frente da produção de um dos grupos veteranos do ramo, a Banda Camelô.

Já para o professor Thiago Soares, essa é a parte controversa do brega-funk, o "falar sobre sexualidade" que, de acordo com ele, não se diferencia tanto quando o mesmo tema é trazido por outros ritmos da música. "O desejo e as questões de ordem mais corporal do brega-funk não se diferenciam tanto de canções que historicamente foram construídas assim. Em relação ao forró, ele também era visto como uma música que se dançava junto e ralava no corpo do outro. Canções populares e corporais sempre serão atreladas a relações e leituras morais.

Uma discussão interessante de ser colocada é o fato da música ser cantada por gente pobre, isso acentua a moralidade sobre esse tipo de expressão e quando julgamos excessiva essa sexualização, há um atravessamento de classe e de raça", explica.

Palco para o antigo e para o atual
O "templo do brega e da música romântica" no Recife, o centenário Clube das Pás, localizado no bairro de Campo Grande, desde sempre abriu as portas para cancioneiros dos gêneros. Comumente lotado de público mais conservador (exigente) em relação ao que "pode ser levado para o palco", o espaço não abre mão de apresentações genuinamente voltadas para sofrências de amor, ora embaladas por nomes "das antigas", ora por mais "moderninhos". De Agnaldo Timóteo a Roberta Miranda e Elymar Santos, como atrações nacionais, a veteranos locais como Kelvis Duran e o saudoso Reginaldo Rossi.

"Dia desses, trouxemos o arrocha e foi sucesso, mas já tentamos implementar forró e não deu certo", conta Jaques Cerqueira, em conversa com a Folha de Pernambuco, representando o presidente da casa, Rinaldo Lima. "É um lugar que acolhe os estilos brega, romântico e apaixonado e, vale dizer, o que se vê por aqui é um público misto, com jovens que vêm dançar e assistir aos shows", exalta Augusto César, um dos bregueiros-românticos mais populares.

Diva do brega
Com uma mala verde de rodinhas e com corações em alto relevo, a cantora Michelle Melo chegou ao Clube das Pás. Suficientemente exuberante, ainda assim, ela se apressou em trocar pelo figurino que carregava no interior da mala. Tomada por brilhos e bota de cano alto, ela estava pronta para fazer, literalmente, caras e bocas para as câmeras. Em conversa com a Folha de Pernambuco, ela fez questão de exaltar o brega, com o qual ela ganhou notoriedade ainda nos anos 2000, à frente da Banda Metade, ocasião em que imprimiu letras de duplo sentindo, cantadas sob sussurros.





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