sábado, 15 de fevereiro de 2020

Escolas de sambas preparam desfiles com suor, amor e criatividade

Apaixonados pelo que fazem, centenas de recifenses organizam suas apresentações para o Carnaval 2020

Detalhe do desfile de 2019 da Pérola do Samba, integrante do grupo especial

Um exército de apaixonados pelo samba prepara, neste exato momento, suas apresentações que vão acontecer daqui a pouco mais de uma semana. Gente como o carnavalesco Ricardo Dias, o "Xuxa", que há quase três meses saiu de casa e dorme no barracão da Galeria do Ritmo num colchonete improvisado, entre penas, tiras de TNT e pedaços de isopor. 
Ou como dona Odila, voluntária da Gigante do Samba que, do alto de seus 97 anos, se empenha em finalizar as fantasias da escola a tempo, prosseguindo uma paixão de mais de cinco décadas. Para arrecadar dinheiro, cada escola conta com a ajuda de seus integrantes, já que a verba governamental representa uma parcela mínima do valor final do desfile. Entre eventos para arrecadar dinheiro, doações e reaproveitamento de material, todos usam a criatividade para driblar a crise e fazer bonito na avenida.

O fato é que, apesar de antigas e com bastante história acumulada (a Limonil, por exemplo, foi fundada em 1935, apenas sete anos após a carioca Mangueira), as escolas de samba pernambucanas são até hoje vistas com certo preconceito, como se fossem simples "imitações" de suas irmãs do Sudeste. "Isso é mentira e ignorância", diz "Xuxa", indignado. "O samba vem de 'semba', uma palavra africana, e o samba de roda e de latada, que deu origem às escolas, aconteceu primeiro no Recife e em Salvador. As nossas raízes são tão antigas quanto as deles, só que a gente como nordestino e sambista nunca contestou a primazia do Rio de Janeiro. A diferença é que lá as empresas ajudam. Aqui, ninguém quer saber do samba", critica.

Francisco Carlos Moura, diretor da Limonil, concorda com "Xuxa". "A diferença de se fazer samba no Recife é que as pessoas colocaram na cabeça que aqui é terra apenas do frevo e do maracatu, e que é para se investir apenas nestes dois, como se nosso Carnaval não fosse multicultural desde sempre", aponta.
Ricardo Dias, o
Ricardo Dias, o "Xuxa", há quase três meses mudou-se para o barracão da Galeria do Ritmo - Crédito: Lidiane Mota/Folha de Pernambuco
Cada escola de samba recebe verba de cerca de R$ 16 mil, divididos em duas parcelas. A conta fica longe de bater: os custos do desfile da Limonil, que tem cerca de 700 integrantes, saem por volta de R$ 90 mil. Já no caso da Galeria do Ritmo e da Gigante do Samba, que têm mais que o dobro de componentes, pode ultrapassar os R$ 250 mil. Apesar das dificuldades, a vice-presidente da Gigantes, Marize Félix, diz que as escolas estão se mobilizando e melhorando seus desfiles. A receita que todas dão para que, ao final, tudo dê certo é uma só: amor.

Preparativos duram o ano todo

Quem é "de fora" do circuito das escolas de samba não faz ideia do trabalho que dá realizar esses desfiles. Em termos materiais, o resultado talvez até seja, sim, mais "pobrinho" que as versões luxuosas do Rio de Janeiro e São Paulo. Mas a garra e a paixão impressionam e envolvem da nonagenária dona Odila a crianças pequenas. 
"Neste ano, teremos um bebê de três meses desfilando com os pais. Eu acho que é um pouco de loucura, mas eles consultaram pediatra e tudo", conta Marize Félix, da Gigante do Samba. Os fãs também não têm idade e partilham desse amor. "Tem uma família que todo ano traz a mãe de quase 90 anos para ver o desfile. Ela faz questão de assistir", conta ela.

Dona Odila, de 97 anos, é voluntária na confecção de fantasias da Gigantes do Samba

Dentro das escolas, a formação começa com os pequenos. Marize começou a desfilar aos sete, seguindo a tradição iniciada por sua mãe - sobrinha de um dos fundadores da escola, ela participou da Gigante dos 8 aos 78 anos. Depois de passar por diversas alas e funções, inclusive de madrinha da bateria, ela se tornou diretora-executiva e, há dois anos, vice presidente. "Eu vivo a escola em meu cotidiano, na minha vida como um todo", se orgulha.

"Xuxa" é assim também. Há 41 anos na Galeria, ele diz que não ganha dinheiro com o samba, só satisfação. "Filho, mulher, ex-mulher, sogra, ex-sogra, todo mundo do meu círculo de amizades acaba saindo na escola", ri. O trabalho é feito na maioria das vezes de forma voluntária e coletiva. "Vou dormir às 3h30 da manhã e às 5h, já pulo da cama. Se dormir mais um pouquinho, não dá tempo de terminar antes do Carnaval", descreve.

Patrimônio ameaçado

Apesar da dedicação, o declínio das escolas de samba recifenses preocupa. Se Gigante do Samba, Galeria do Ritmo, Pérola do Samba, Limonil, Imperadores da Vila de São Miguel e várias outras continuam desfilando, diversos grupos deixaram de ir às ruas. "Eram doze ou mais no primeiro grupo, foram caindo, sumindo. Hoje são cinco", lamenta "Xuxa", para quem há 20 anos era muito mais bonito e divertido competir.

"A briga era boa", relembra, citando os Sambistas do Cordeiro, a Vai quem quer, a Preto Velho de Olinda e a Quatro de Outubro - esta última, com mais de oito décadas de fundação. Além das dificuldades em relação à subvenção, os custos com material são grandes. "A gente não tem condições de fazer fantasia de luxo. Só uma pena de pavão custa R$ 16, e uma fantasia fica, por baixo, por R$ 3 mil. Não dá. Então a gente usa ráfia, TNT, espuma. Inventa outras soluções", explica ele.

Limonil volta a integrar o primeiro grupo, em 2020
Limonil volta a integrar o primeiro grupo, em 2020 - Crédito: Sérgio Bernardes/PCR
Momento de esperança

Ainda assim, 2020 será um marco para as três escolas ouvidas nesta reportagem. A Gigante quer conquistar seu 13º título de campeã. "Temos um total de 47 títulos e, antes, estávamos perdendo há sete anos consecutivos. O segredo tem sido a dedicação", comemora Marize Félix, vice-presidente da escola.
Já a Galeria do Ritmo, há doze anos em segundo lugar, quer mudar essa situação. "No ano passado entramos com recurso, porque fomos campeões de fato. Tiramos dez em tudo", reclama "Xuxa", para emendar em seguida que a rivalidade é só na passarela. "Lá é sangue nos olhos, ninguém nem olha pro outro. Pessoalmente, quem é do samba se trata bem, porque sabe a dificuldade que é levar esse sonho adiante", descreve.
A Limonil, por sua vez, está de volta ao grupo especial, com gosto de gás. Menor e com menos verba que as outras duas, ainda assim vai com força para a avenida."Vai ser difícil, mas é um orgulho danado estar desfilando, mostrando nosso amor pela cultura, pelo samba, pela escola", diz emocionado Francisco Carlos.

Mais que os R$ 20 mil aos quais a escola campeã vai fazer jus, a meta é ganhar e espalhar beleza. "A luta é grande, mas tudo se transforma na hora de mostrar nosso Carnaval, que passamos um ano estudando, idealizando, produzindo", diz "Xuxa".

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