quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Intimidade violada: mulheres são alvo de jogo criminoso de assédio e reagem

Por Andrea DipDa Agência Pública
Da cantada de rua aos cursos de formação de predadores, mulheres são alvo de um jogo criminoso e se insurgem contra a tolerância cúmplice da sociedade
Técnica de Julien Blanc inclui pegar mulheres pelo pescoço / Foto: Reprodução
Técnica de Julien Blanc inclui pegar mulheres pelo pescoçoFoto: Reprodução
“É ofensivo, é inapropriado, é emocionalmente assustador mas é muito efetivo” propagandeia o suíço Julien Blanc sobre seu método para “pegar” mulheres neste site em que vende os cursos de sedução que dá pelo mundo, por até 3600 dólares por cabeça. Entre suas técnicas estão as de abordar mulheres desconhecidas nas ruas, bares ou casas noturnas pegando-as pelo pescoço e empurrando em direção aos seus genitais, pedir à mulher que “se ajoelhe, me chame de mestre e me implore por um beijo”, atacar sua autoestima, ignorar respostas negativas e fazer ofensas racistas.

Aulas práticas do curso em um clube noturno de SP. “Tem que ter ‘fisicalidade” / Foto: Chris Von AmelnPara quem não acompanhou o barulho nas redes sociais no último mês – ou já esqueceu –, Julien é um pick-up artist (PUA) ou “artista da pegação” (em uma tradução tosca como o termo merece) e faz parte de uma comunidade que cresce rapidamente no mundo todo, inspirada no livro “O Jogo” do jornalista Neil Strauss. De forma romanceada, Strauss conta como passou de tímido a sedutor usando técnicas de linguagem corporal, hipnose e abordagens invasivas inspiradas na programação neurolinguistica e que teoricamente funcionam com qualquer mulher em qualquer lugar no mundo. É como uma combinação de botões que quando apertados no console de um videogame destravam um bônus – nesse caso uma mulher.

Blanc, que diz ter aprimorado as técnicas de PUA “deixando o jogo ainda mais forte” e chegou a divulgar em seu Twitter fotos pegando meninas pelo pescoço com a hashtag #ChokingGirlsAroundTheWorld, daria cursos em Florianópolis no começo do próximo ano. Mas uma petição no Avaaz com mais de 410 mil assinaturas (até o fechamento dessa reportagem) para que sua entrada fosse barrada no país chamou a atenção do Itamaraty, que declarou “já haver elementos suficientes para denegar visto de negócios para a realização de palestras, caso este venha a ser solicitado em Consulado ou Embaixada brasileira”. O suíço também teve sua entrada negada no Reino Unido e foi expulso da Austrália.

Ainda assim não há muito a comemorar. É só digitar a sigla PUA em um site de buscas para ver quantos cursos da comunidade já existem há anos no Brasil. Alguns mais violentos, outros com propostas um pouco menos agressivas mas todos extremamente machistas e com algumas características em comum. A mais importante é abordar mulheres desconhecidas nas ruas insistindo mesmo depois de obter um “não” como resposta como comprovou o repórter Caio Costa, enviado da Pública a um desses cursos. As táticas funcionam na lógica de jogo – usam termos como daygame e nightgame para definir as abordagens, “escalada” sobre o aumento progressivo de contato físico que deverá resultar em sexo, assim como outros termos e passos de conquista que devem ser repetidos à exaustão.

Se portar como “macho alfa”, o “homem que mostra quem é que manda” é o que se espera dos aprendizes como ensina o livro “A Arte Natural da Sedução”, de Richard La Ruina, um dos grandes mestres PUA: “Não dê a ela o poder de tomar decisões, e sim a opção de aceitar suas escolhas”. No Youtube há centenas de vídeos ensinando essas abordagens, com milhares de visualizações, muitos mostrando os rostos das meninas. Além dos sites que vendem os cursos, existem também fóruns de discussão onde os “pegadores” se gabam de suas conquistas, propõem desafios e trocam experiência – leitura não recomendada a quem tem estômago fraco. Aliás, leitura não recomendada em hipótese alguma.

“É necessário se posicionar bem próximo da garota, para ter ‘fisicalidade’. Quando você chegar assim perto dela pra conversar, ela vai sentir um desconforto, não vai? O que é esse desconforto? Esse desconforto é tensão sexual. Ela provavelmente vai andar pra trás. Continua conversando e depois chega perto de novo” ouviria o repórter Caio Costa durante o bootcamp (treinamento PUA). “Se a mulher recuar, o homem avança. Se ela não se mexer, quer ser beijada. Se a menina não for embora ou ameaçar chamar o segurança, não há motivo para desistir. Cabe à mulher encerrar a abordagem. Mesmo que deixe claro que não está interessada, se a presença do homem a incomoda, é ela quem deve se mover”, ensinava o instrutor. Antes do nightgame, a dica para encorajar o assédio: “Não existe esse negócio de mulher ir pra balada pra se divertir. Mulher vai pra balada pra dar. Se quisesse se divertir ficava em casa vendo um filme com as amigas”.
Abordar mulheres desconhecidas nas ruas insistindo mesmo depois de obter um “não” como resposta pode
configurar importunação ofensiva ao pudor segundo o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais com pena de multa mas até o momento não se tem notícia da aplicação dessa lei. Além desse tipo de curso, o Brasil começa a ter os seus próprios “teóricos”. No livro “Brazilian Natural Game – O manual sobre jogo natural totalmente desenvolvido para o Brasil”, o autor Eduardo Playtool diz ter adaptado o método para a “realidade brasileira”. “Europa e EUA são países de classe média (sic) onde quase todo mundo tem o mesmo nível seja ele financeiro, social ou educacional (…) Aqui é um país de intensa desigualdade social e isso pode criar problemas para alguns e também pode ser algo a ser aproveitado independente de quanto dinheiro você tenha”. Eduardo continua destilando toda forma de preconceito no decorrer do livro.
“Comparem o nível da mulherada numa balada de 15 reais e na balada de 150. Comparem o nível da mulherada em shopping luxuoso e em shopping simples de periferia. É brutal. Isso ocorre porque geralmente caras ricos se casam com mulheres mais bonitas e por isso suas filhas são mais bonitas geneticamente e tem acesso fácil a tratamentos de beleza, dermatologistas, cirurgias plásticas, bons cabeleireiros, academia, boa alimentação, etc” e “Se um cara da periferia que se veste como ‘mano’ com a calça caída, usa gírias ridículas e fala ‘e aí mina, tá ligada nas parada’ acha que vai pegar uma bailarina do Faustão ou uma patricinha de balada top pode ter certeza que as chances estão muito contra”. Eduardo também ensina a atrair mulheres para sua casa sem deixar clara a intenção. No tópico “Arrastando o alvo para o abatedouro” ele diz: “O princípio é não deixá-la desconfortável. Ou seja: Eu não falo em ir para a minha casa jamais. Sou bem cara de pau. Simplesmente a levo, já planejando uma desculpa plausível para evitar o desconforto na hora em que ela perceber para onde está indo”. Além do desrespeito evidente, esse tipo de armadilha aparece em muitos casos de estupro, em que uma das entrevistadas conta que foi levada enganada para a casa do agressor e, quando negou sexo, foi estuprada e torturada.

ILUSÃO DE PODER O psicólogo e pesquisador Vitor Muramatsu, chama a atenção para o descolamento da realidade implícito nos ensinamentos: “O PUA se baseia na Programação Neurolinguística, que por si só já é um câncer, uma semirreligião. Ela faz um apanhadão de migalhas de teorias dos grandes mestres como Reich, Freud, mistura com Gestalt e hipnose e aplica na reprogramação mental para modelar um comportamento, passar uma tinta. No livro ele [Eduardo Playtool] diz que para ter sucesso é preciso repetir ‘eu sou o cara’, ‘eu sou foda’, ‘todas as mulheres querem dar pra mim’ para construir uma persona artificial. Quando diz ‘Sei que sou foda independente de como as pessoas reagem’ você tem uma questão com a relação do feedback do real. Ou você ignora ele ou você absorve e isso tem um efeito na sua personalidade, no seu comportamento”. E dá um exemplo: “Digamos que eu aborde a mulher da padaria e não dê certo. Ou eu absorvo aquilo ou eu blindo aquela rejeição. São duas posturas totalmente diferentes. A primeira é mais humana, dialética, contemplativa e estruturante, cria uma modificação real, te traz para o real e a outra não, você é um pirado. E a tendência é que você se blinde da realidade, porque você se blinda da resposta que ela te traz. Quando ele fala em ‘ir para o contato físico’ invade a privacidade das pessoas. Os alunos podem entender qualquer coisa dessas instruções. E se não tem limite, podem causar dano para a sociedade ou a si mesmos por viverem em um mundo de loucura, igual jogador viciado. E aí o perigo é estarmos criando uma seita de violadores irrefreáveis”.


Capa do livro de Eduardo Playtool que “atualiza” as técnicas PUA para a “realidade brasileira” / Reprodução

“Uma coisa é eu autorizar você a falar comigo e a gente começar a flertar. Na rua eu não autorizei, não te conheço e não quero te conhecer. Mas a sociedade autoriza e legitima que um homem aborde uma mulher, porque historicamente o espaço público sempre foi masculino. E é contraditório que antes o espaço público era dos homens e o privado das mulheres mas nem no espaço privado a mulher era respeitada. Ela também sofria – e ainda sofre – violência onde é chamada de ‘rainha”, explica a a antropóloga Izabel Gomes.

Para ela, a raiz de todas as violências – da doméstica ao estupro, do feminicídio ao assédio – é a mesma: “Não tem discurso novo. É violência de gênero, é patriarcado e é condição de não sujeito. Vem tudo da mesma estrutura de dominação. Como os homens podem querer nos manipular, fazer um jogo e vencer etapas para conquistar? Tomar nossa liberdade na rua? Acho que só em um esquema de dominação ainda tão forte e estruturado isso é possível. E aí não dá pra não falar das relações de patriarcado, que tratam a mulher não como sujeito ou, na melhor das hipóteses, como alguém de menor valor. Os avanços das últimas décadas nas leis – temos igualdade na lei salarial, temos uma lei para violência doméstica, temos uma mulher presidente – fazem com que a gente não perceba os retrocessos (Alô Bolsonaro). A impressão que se tem é que por conta desses direitos conquistados não se tem violência contra a mulher e quando tem, a própria mulher é responsabilizada. Nós temos hoje uma mulher sendo estuprada a cada dez minutos no Brasil. Nesse contexto, um curso desse tipo é ainda mais grave” define a antropóloga.

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